PERIGOSA MONOTONIA
Ninguém sabe ao certo como tudo começou, talvez tenha sido herança hereditária, como dizia seus colegas de profissão. Afinal, ele era filho de operários, o pai passara toda a vida profissional na linha de montagem de uma única peça e adquiriu uma grave lesão por esforço repetitivo. A mãe trabalhava em uma fábrica de bonecas, embalando uma a uma, nunca exercera outra função, acabou por contrair um exasperado estresse psicológico, tendo que ser internada, já que pensava ser uma das bonecas.
Seu nome era Francisco, bem comum e repetitivo nos cartórios brasileiros e repetitividade era quase seu sobrenome. Nascera e vivera em casa de conjunto habitacional, do tipo que só se diferencia pelo número e por uma pintura, se fosse o caso.
Francisco crescia e vivia em um ambiente de completa monotonia e alienação. Foi imposição do meio e das condições em que era inserido. Por seus pais trabalharem durante todo o dia e até às vezes pela noite, ele ficava aos cuidados de uma creche da prefeitura, onde aprendia sempre a mesma coisa: rabiscar.
Já adulto Francisco vai morar sozinho e o vício da monotonia agora já fazia parte de sua vida, tornara-se uma imposição sem escolhas. Morava em um apartamento simples, decorado da mesma cor: branca, por transmitir idéia de igualdade, dizia ele. Adorava assistir a filmes que retratassem alguma rotina, o filme de Chaplin, “Tempos modernos”, chegou a assistir exatamente 427 vezes, sem falar em outros tantos do gênero, que não hesitava em pôr em seu aparelho de DVD ao chegar do ofício.
Sua alimentação era sempre a mesma, adorava arroz com bifes e fritas. A indumentária também praticamente não mudava: camisa branca de seda e calça cinza. Possuía um conjunto de vestes em seu guarda-roupa no mesmo estilo. Enfim, sua vida era um festival de repetições, e isso se refletia muito em sua vida social, as críticas à sua maneira de agir eram intensas, contudo, ele não se importava a monotonia para ele era algo prazeroso e já fazia parte de seu ser.
Trabalhava em uma das maiores rede de lojas de vestuário feminino da cidade e a ele cabia a ação de trocar todos os dias as peças de roupas de dezenas de manequins. Não sentia o menor desgaste em fazer a mesma função inúmeras vezes, já estava há 17 anos nesse mesmo cargo. Alguns de seus colegas, por solidariedade, até falavam com seu chefe para trocá-lo de setor, qualquer um ficaria saturado nessas condições, seu supervisor falava: “Não precisa, ele é um funcionário exemplar, adora o que faz, vejam só a sua expressão de contentamento!”. E realmente ele não ligava em labutar várias horas a mais de seu expediente normal.
Porém, um dia, a loja recebe uma enorme encomenda de uma nova coleção “Outono-inverno”. Não mais que 398 manequins precisariam ser despidos e vestidos com os novos trajes, pois o lançamento já seria no dia seguinte. Francisco ficaria até bem mais tarde e só sairia depois que trocasse o último manequim.
A noite havia chegado, e ele já se sentia bem exausto ao vestir o manequim de número 398. A sua percepção e raciocínio pela primeira vez estavam confusos devido à sobrecarga de trabalho. Todos os demais funcionários já haviam ido para suas residências e ele sendo o derradeiro, ficou imputado de fechar a loja. Quase não conseguia acertar a fechadura, parecia entorpecido, embriagado por algo que antes lhe era prazeroso.
Caminhou até ao ponto de ônibus e de repente se deparou com algo muito estranho parado junto a um poste. Estaria louco ou estava vendo mais um manequim em pé a sua frente? Não havia terminado de trocar todos? Por via das dúvidas começou pelas vestimentas de cima e depois tentou as de baixo. Alguns instantes depois, Francisco se encontrava em uma cela de prisão, detido por atentado violento ao pudor.
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